Dezesseis anos depois, dia de catarse no júri
Procurador da República relata a condenação do homem que matou seu pai
Sob o título “Um júri”, o texto a seguir é de autoria do Procurador da República Vladimir Aras, da Bahia, e foi publicado originalmente em seu blog (*). Trata de um júri que ocorreu em Pernambuco no último dia 29/11. “Um entre tantos casos impunes ao longo de décadas”, diz.
“— Compadre, quero morrer/com decência, em minha cama./De ferro, se for possível,/e com lençóis de cambraia./Não vês que enorme ferida/vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas/traz tua camisa branca./Ressuma teu sangue e cheira/em redor de tua faixa./No entanto eu já não sou eu,/nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos/até às altas varandas./Que eu possa subir! que o possa /até às verdes varandas.“
(Fragmento de “Romance Sonâmbulo” de Federico García Lorca).
Depois de 16 anos de espera e dez horas de tensão, o 29 de novembro de 2012 foi um dia de catarse.
Plenário do tribunal do júri de Petrolina, Estado de Pernambuco. Eu presente. Embora ausente, meu pai também estava ali: o sociólogo José Raimundo Aras fora a vítima.
Finalmente, o sr. Carlos Robério Vieira Pereira, S. Exa. o réu, teve seu encontro com a espada de Têmis, a afiada língua de um promotor de Justiça. Pelos idos de 1996, esse moço cumpriu uma empreitada. Três homens que louvavam o dinheiro alugaram seu serviço para um crime de mando: matar meu pai. Escolheram-no a dedo. Já era um tarimbado homicida. Em 1988, na vizinha Juazeiro, ele tirara a vida de outro homem. Mas só foi julgado em 2002, sendo condenado a 6 anos de prisão… É quanto vale uma vida no Brasil.
Depois das idas e vindas tão características do tortuoso processo penal brasileiro, uma representação por excesso de prazo ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu gavetas esquecidas. De uma saiu um velho processo. Da outra, antigas feridas. Chegara a hora. O pistoleiro seria o primeiro dos quatro homicidas a ser julgado pelo povo de Petrolina.
Na tribuna, às margens do majestoso Rio São Francisco, esteve todo o tempo, como um soldado da sociedade, o promotor Júlio César Soares Lira, que sustentou a acusação de homicídio duplamente qualificado. Em 1996, já membro do Ministério Público, nada pude fazer para impedir essa violência contra meu pai, morto em consequência de sua atividade como auditor fiscal, na região de Juazeiro. Ele descobrira um esquema de sonegação de ICMS, envolvendo grandes atacadistas dali, que formavam a “Máfia do Açúcar”. Perdeu sua vida por isto. Mas não perdeu seu nome, nem sua honra. Era um servidor público.
Sonegação “mata” escolas; sonegação “mata” hospitais; sonegação “mata” rodovias. Sonegação mata pessoas. A sonegação matou meu pai. A tiros.
O “Velho Chico“, onde J.R. banhou seus sonhos de infância, levou seu sangue para o mar. O menino que meu avô — o escritor José Aras –, chamava de Zênite, agora ocupava o firmamento. Como a Lua do romance cigano de Lorca, era uma face pálida e fria quando o velamos em Salvador em outubro de 1996. Nunca o enterramos.
Quem mata um homem, mata o mundo. Um homicídio não é a morte de uma pessoa, doutores da lei. É um universo que se perde; pensamentos, histórias e futuro que se vão. Uma vida em vão. Filhos sem pai. Esposa sem marido. Amigos sem conforto. Um vagalhão de horas incertas. – “Por que não tenho vovô?”, pergunta a neta… E eu não tenho o que dizer.
A cadeia não é recompensa. Pode ser castigo. “Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil” (Mateus 5:26). Mas no Brasil, Terra de Santa Cruz, as vítimas carregam umas bem pesadas. Mesmo condenado, tarda o executor do crime a pagar o seu “imposto”. Sentenciado a 18 anos de reclusão em regime fechado, continua inocente, como você e eu. Dizem que é o que está na Constituição. A vítima está morta, sem apelação.
Ali mesmo onde também tombou o meu colega Pedro Jorge de Melo e Silva, começamos a sentir uma brisa de esperança. O tribuno Júlio César Lira estava a postos, do lado da sociedade, para “cobrar” o tributo devido pelos réus.
Quero agradecer publicamente a este especial promotor de JUSTIÇA, que mostrou sua honradez logo na seleção dos jurados, ao recusar motivadamente um dos cidadãos sorteados, por ser ele da mesma profissão que a vítima. Na sua pessoa, quero agradecer a todos os promotores do júri do Brasil que labutam em casos iguais nos rincões deste País. Não esquecem as vítimas. Säo sua última voz. Força, colegas. Não desanimem nunca!
Quero agradecer a este promotor de Justiça por haver conseguido a prisão preventiva de um dos mandantes, talvez o verdadeiro cabeça da trama. Confiando na impunidade e crente nas firulas parnasianas do processo, S. Exa. o sr. Carlos Alberto da Silva Campos não compareceu ao júri. O corréu correu. Usou o batido “motivo de saúde” como escusa. O réu está doente, mas é a Justiça quem padece. Júlio César tinha pronto o antídoto, com a fórmula número 312, da botica do CPP. Se o réu é um devoto da prescrição, do lado de cá temos fé num julgamento justo, que dê a César aquilo que é seu. Foi então que um juiz probo e correto, um Cícero, decretou a prisão cautelar do réu “ausente”. A razoável duração do processo é também uma garantia dos ofendidos. E nós todos estávamos ali. Esperando. Pois este é o estado de quem tem esperança.
Quero agradecer-lhe, Júlio César, por ter atuado como um Neymar no “primeiro tempo” e ter ido à réplica com a maestria de um Messi, voltando ao pódio da sociedade melhor ainda do que antes, inflamado e centrado na prova, inspirado e motivado, contundente como um soco no estômago. A impunidade ainda se insinuava nos desvãos da lei.
Quero agradecer-lhe por ter defendido a memória da vítima, vilmente atacada em plenário pelo advogado do réu. Se sua tese era a negativa de autoria, qual o propósito em vilipendiar quem ali não tinha direito à “ampla defesa”? Nas mesmas terras em que passou parte de sua infância, o sertanejo José Raimundo Aras viu sua vida ser levada pelas mãos avarentas de quatro assassinos. No tribunal do júri, no dia do julgamento do seu carrasco, o defensor do acusado quis matar-lhe também a honra. Mas não conseguiu: um promotor estava de guarda.
Quero agradecer-lhe por revelar a inconsistência da tese do defensor, dando-lhe o nome que merecia: “pastel de feira”, grande, vistoso e fácil, mas vazio e insosso, um “pastel de vento”. Todo homem tem direito a defesa. Mas, para vencer, é preciso ter razão!
Quero agradecer-lhe por haver saudado a cadeira vazia, o “banco das vítimas”, mais doloroso e frio que o banco dos réus. Têm em comum uma certa dor, mas aquele é mais perene do que este e mais imediato. Para a vítima que vai e para as que ficam a pena é cumprida logo e sem recurso. É comprida…. A sanção da ausência é para sempre e sem devido processo. Para a cadeia se vai e há sempre regresso.
Quero agradecer-lhe como cidadão, não como colega, pois ali estávamos os filhos, os amigos, os parentes à espera de Justiça, a mesma que também é prometida a todos os cidadãos pelo art. 5º da Constituição, mas sonegada dia após dia, desde os Pampas até a Floresta. Era uma promessa da lei. E o promotor Júlio César a entregou! O veredicto do povo pernambucano pôs um primeiro curativo em feridas não cicatrizadas há mais de uma década. Doem ainda, confesso. Nesta hora, não tenho direito ao silêncio.
Quero agradecer-lhe por não haver descansado nem depois de lida a sentença. Com um denso requerimento de preventiva, rebateu o absurdo que há em um homem ser condenado por um tribunal “soberano” a 18 anos de prisão e sair solto pela mesma porta dos seus juízes e de suas vítimas. S. Exa. o réu respondia em liberdade. Assim recorrerá até as calendas gregas. Deus sabe quando.
Nada fora do script. Há outros inúmeros casos assim. O dedicado juiz que presidiu a sessão seguiu a jurisprudência “dominante”. Invocou o caso “Mensalão” para dizer que, se lá, onde os réus não têm direito a recurso algum, todos estão soltos, ali, “com mais razão”, o réu deveria recorrer em liberdade. O executor, que leva no curriculum duas condenações por homicídio, mora em Manaus. Mas a “jurisprudência” de Brasília está ao seu lado. Teremos de confiar – apenas isto – que ele, já condenado, não se enfurnará num igarapé ou que não cruzará uma fronteira qualquer.
Como se vê, os exemplos das cortes superiores arrastam os juízes – mesmo os probos como este. Porém, não foi a lição estereotipada vinda das cortes de Brasília o que marcou esse episódio. Felizmente, o exemplo que moveu a comunidade petrolinense e os vários estudantes que ali estavam nesse dia memorável foi o amor do promotor Júlio César Lira pela camisa rubro-negra, não a vermelha e preta do seu Sport, mas a preta e vermelha do nosso Ministério Público.
Graças a sete jurados, graças a um Cícero e um Júlio César, foi uma vitória açucarada como compota de caju. Refrescante como a sombra do pé de umbu. Foi vitória que reconforta como cuscuz sertanejo. Foi momento tenso, triste, turvo, contudo benfazejo.
A Justiça tardou, mas não falhou. Não festejo. São remendos que não curam, mas confortam. Ficam a fé e a perservança; são estas que importam. Não há o que comemorar: a vítima continua morta. Um homicídio fecha mais do que uma porta.
Veio a noite, sem lençóis de cambraia. A expectativa dos próximos capítulos me despertou. Amanhecia nas barrancas do rio. Sete de maio não será tarde para o encontro dos três mandantes com suas ações. Outros sete homens decidirão. Um habeas corpus paira no ar. Planejam a prescrição.
Voei bem cedo de Petrolina para a Bahia. Estava tudo azul. Da cabine, o comandante anunciou que a chefe das comissárias de bordo descobrira horas antes que estava grávida. Palmas no avião. Notícia de morte. Notícia de vida.
Sobrevoando o sertão nordestino, lembrei-me de meu pai, de seu poeta preferido, Federico García Lorca, e da vontade desse poeta de subir até as “altas varandas”, até as “verdes varandas”.
Por isto, escrevi:
Trago lembranças doces de lugares amargos.
Trago consolos e afagos.
Trago lágrimas e novos confrades.
Trago ainda a saudade
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