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sábado, 22 de dezembro de 2012

O VÍDEO DA SEPARAÇÃO - IVAN MARTINS



O vídeo da separação

Transformar a vida em espetáculo online não é a solução para as nossas dores

 
IVAN MARTINS
 
IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
Muitos de vocês devem ter visto, como eu vi, o vídeo do casal que pôs uma um clip na internet para anunciar a separação deles. Os dois são bonitos, a música é meiga, mas a coisa toda, francamente, é o fim da picada. “Eu quero ter filhos, ela não quer. Pensei que ela fosse mudar de ideia, mas não. Separar é a única solução”, eles cantam diante da câmera. O fim do casamento, que por definição é um evento íntimo, se transformou em espetáculo público. Agora faz parte do grande show da vida privada na internet.

No ritmo em que vamos, antevejo o momento em que a separação vai ser apenas mais um instante público na vida dos casais. Caminhamos rapidamente para as DRs pela internet. O casal se desentende e logo em seguida cada uma das partes corre para o computador, liga a câmera e coloca no ar a sua versão dos acontecimentos. Tipo reality show. Em meia hora, será possível constatar quem teve mais Likes e quantos dos amigos votaram com quem na discussão. Seria uma espécie de intimidade direta. “Sabe quantas pessoas curtiram nossa última DR no Facebook? Vinte e oito mil...”. O vídeo do casalzinho americano que se separou já teve mais de um milhão de visualizações no YouTube. Da última vez que eu soube, eles estavam dando entrevistas sobre a sua vida pessoal. Viraram celebridades.

Escrevo sobre essas coisas com a mínima esperança de que a crítica possa ter qualquer efeito. Acho que já passamos do ponto de retorno sobre esse assunto. Estamos intimamente contaminados pela noção de audiência. Valemos quanta atenção somos capazes de atrair. 
De alguma forma sempre foi assim, mas antes da internet e das redes sociais o fenômeno estava oculto. Havia o sujeito que falava sem parar sobre si mesmo e sobre a sua intimidade, mas tudo acontecia no bar, para uma pequena audiência. Apenas os artistas – escritores, poetas, teatrólogos, diretores de cinema – estavam autorizados a expor suas vísceras para o consumo do grande público, desde que na forma de arte. Então os artistas viraram celebridades e passaram a viver seus amores, separações, dramas e sucessos diante das câmeras, em tempo integral. No momento seguinte, as pessoas comuns foram chamadas para fazer parte de reality shows e a vida delas também virou um espetáculo.

Quando apareceu a internet e as redes sociais, a espetacularização da vida deu um salto. A nossa verdadeira natureza se revelou. Somos carentes incuráveis e rapidamente nos tornamos viciados em atenção pública. Postamos fotos, publicamos vídeos, escrevemos pequenos ou grandes textos. Queremos ser vistos e ouvidos, temos coisas a dizer. Cada um de nós conseguiu um público e ele exige revelações. Pode ser sobre o trabalho, sobre a saúde, pode ser sobre os detalhes banais do cotidiano. O importante é escolher o assunto e editar direito. É o fantástico show da nossa vida que está no ar. Quanto mais drama e sinceridade, melhor, como ensinou o casal: “Eu quero ter filhos, ela não quer. Pensei que ela fosse mudar de ideia, mas não. Separar é a única solução”. Não dá para ser mais despudorado.

Apesar desse impulso de auto-divulgação, que corrompe os nossos melhores momentos de intimidade com o desejo sorrateiro e quase irresistível de compartilhar, acho que devemos resistir. Na verdade, penso que essa é uma das grandes questões morais contemporâneas. Temos o dever de resistir à banalização online da nossa vida e dos nossos sentimentos. Temos de combater a pressão para contar tudo e partilhar tudo na internet. Temos de reafirmar o direito à privacidade e ao silêncio. Temos de reaprender a ser reservados e circunspectos.

Em alguma medida, é essencial sofrer solitariamente, conviver calados com nossas emoções, pisar o fundo do poço com os nossos próprios pés. Essa farra de divulgação na internet não ajuda o nosso crescimento pessoal e nem resolve a nossa vida quando a barra pesa. É apenas uma ilusão.

A escritora americana Jennifer Egan disse outro dia à Folha que o único jeito de fazer alguma coisa que preste era resistindo à tentação de ficar online o tempo todo. Ela falava de arte, mas eu acho que vale para a vida. Sobretudo a nossa vida afetiva e emocional. Ela exige recato e recolhimento. As sensações da audiência são falsas e vazias. Elvis Presley morreu sozinho, a seu tempo o homem mais famoso do mundo. Marylin Monroe teve o mesmo fim. A morte de Michael Jackson todo mundo lembra, por ser tão recente. Que exemplos mais a gente precisa para entender que fama, ibope e audiência não garantem ninguém emocionalmente? Com a microfama da internet não é diferente. Ela apenas exaspera o vazio e a solidão que moram dentro de cada um de nós, e que deveriam ser enfrentados de frente, como se faz desde que entramos nas cavernas.

Vale o mesmo para a separação. Ela machuca, dói, cobre a nossa vida de tristeza e dá vontade de morrer. Quando meus amigos se separam eu olho para eles e vejo dor e hesitação e perplexidade. Não adianta fazer um vídeo engraçadinho. Na verdade, seria falso e feio fazer um vídeo engraçadinho com essa dor. Ela é pessoal e intransferível. Ela não cabe numa festa de divórcio. Quem se separa precisa da dor para achar seu próximo passo. É assim que seres humanos funcionam, mesmo na era das redes sociais. Quem apenas mergulhar no espetáculo, quem se esconder atrás da produção do espetáculo, vai perder a evolução e a passagem dos seus próprios sentimentos. Eles são a única coisa que nos assegura que estamos vivos. Não as imagens gravadas no YouTube. Apesar da enorme audiência.

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