Tragédia (reinaldo azevedo)
O
país parou para acompanhar detalhes de uma das maiores tragédias de sua
história. Duzentos e trinta e um moços e moças saíram de casa para se
divertir na noite de sábado e jamais voltarão. Morreram queimados ou
asfixiados — a grande maioria — na boate Kiss, na cidade de Santa Maria,
no Rio Grande do Sul. Ficamos, especialmente os pais de adolescentes e
jovens, paralisados de medo, de apreensão, de terror. Qualquer morte nos
diminui. A de um ente querido nos destroça. A de um filho, então,
subverte aquele que é o nosso mais duro aprendizado: morrer um pouco por
dia para que sobreviva a nossa descendência. Em “Cântico do Calvário”,
escrito justamente em memória de um filho morto, Fagundes Varela pôs nos
justos termos:
“Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. — Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.”
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. — Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.”
Penso na
dor dessas mães e desses pais e rezo para que encontrem algum conforto.
Lembro-me de ter me irritado certa feita com a minha mãe por causa de
seu excesso de preocupação, ainda que estivéssemos a centenas de
quilômetros de distância: “Pô, eu sei o que faço; já tenho mais de
trinta anos”. E ouvi do outro lado: “E continua meu filho; filho não tem
idade para mãe e para pai”. Hoje sou eu que ouço: “Pai, eu já tenho 18,
já tenho 16…”. Filhos não têm idade. As nossas crianças têm de voltar
para que possamos fechar a porta, deixando do lado de fora as tormentas.
Mas a
nossa dor também tem de saber exercitar a devida ira. Com a conivência
de muitos, a Kiss não era uma boate, mas uma armadilha. Parece evidente
que muitos milhares se arriscaram antes a morrer nas suas dependências.
Faltava apenas o casamento do fortuito com o inexorável. As imprudências
meticulosa e metodicamente praticadas careciam do elemento incidental,
da estupidez que serve de estopim, do gesto tolo, irrelevante, que
provoca a reação em cadeia e resulta na tragédia.
Na
madrugada de sábado para domingo, ele veio na forma de um sinalizador,
uma espécie de fogos de artifício, usado pela banda. Uma fagulha atingiu
o teto de papelão e material de proteção acústica, altamente
inflamáveis. Em segundos, o fogo se espalhou pelo teto. Estima-se que
90% das vítimas fatais tenham morrido asfixiadas pela fumaça, não
queimadas. Talvez duas portas de emergência, destravadas, tivessem
bastado para evitar a tragédia.
O Plano de
Prevenção de Combate a Incêndio tinha vencido em agosto do ano passado e
não havia sido renovado, informa o comandante-geral do Corpo de
Bombeiros do Rio Grande do Sul, coronel Guido Pedroso de Melo. É, sim,
uma informação relevante, que parece indicar que a casa não primava
exatamente pelo respeito às regras. Mas essa informação pode contribuir
para omitir outra, que me parece ainda mais importante: quer
dizer que, até agosto de 2012, o Corpo de Bombeiros julgava que tudo ia
bem num imóvel que abriga duas mil pessoas e tem uma única porta. Ela
não só servia à entrada e à saída dos frequentadores como era obstruída
por uma espécie de biombo, que impedia os seguranças de ver o que se
passava lá dentro, razão por que, por alguns poucos minutos, eles
tentaram impedir a fuga dos jovens, supondo que queriam sair sem pagar a
conta.
O incêndio
causou um curto-circuito e deixou a moçada no escuro, em meio à fumaça.
Não havia luzes de emergência, acionadas automaticamente quando há o
corte do fornecimento de energia elétrica. Um extintor também não teria
funcionado. A boate Kiss não poderia, naquelas condições, estar
funcionando. E não era um empreendimento pequeno, que tivesse existência
clandestina. Talvez fosse a maior casa do gênero em Santa Maria, uma
cidade de porte médio, com 230 mil habitantes, mas com vida noturna
agitada em razão da universidade federal, que atrai jovens do Brasil
inteiro. A festa de sábado tinha sido organizada por alunos do primeiro
ano dos cursos de de Tecnologia de Alimentos, Agronomia, Medicina
Veterinária, Zootecnia, Tecnologia em Agronegócio e Pedagogia.
Estupidez
Não, senhores! Essa não é uma tragédia
fabricada pelo acaso. Ela é obra de uma cadeia de descasos. Uma casa
dessas dimensões tem de ter, por exemplo, uma brigada civil de combate a
incêndios. A ela caberia dizer à tal banda “Gurizada Fandangueira” que o
ambiente era impróprio para o uso de fogos de artifício.
Que se
apurem as responsabilidades. Não sou polícia técnica nem perito. Mas há
elementos de sobra para concluir que a “fatalidade” que resultou na
morte de 231 jovens foi construída. Eles foram mortos pela estupidez,
não pelo destino.
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